sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Pare de não fazer sentido

foto: Julie



foi ontem o lançamento do álbum solo de jean mafra. noite especial para ele e para quem compareceu ao SESC-Prainha e pode presenciar a apresentação de um grande artista que, acima de tudo, presa pela qualidade e acredita no que faz. além de canções do álbum , jean apresentou outras canções de sua autoria e recheou o show de surpresas, com sua miniopereta de bolso, que inclui a canção "arrependimento", presente no álbum, e "fio de cabelo", de chitãozinho e chororó. ladeado pelos "garotos de aluguel", jaguarito, na guitarra, e isaac varzim, responsável pela maioria dos efeitos de programação do álbum, reproduzidos apresentação de ontem, jean contou também com a participação de belas e belas vozes: bárbara damásio, paula felitto, lígia estriga e emília carmona (aiai). groove, sensibilidade, audácia, letras minuciosamente lapidadas, vocais calculados, talvez, para poucos.

abaixo, segue o release que fiz para o álbum. recomendo a audição e comparecimento aos shows. quem sabe algo nisso faça sentido.

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jean mafra



essa é a primeira parte do título do álbum solo de jean mafra. provavelmente refere-se ao fato de ser um trabalho autoral, independente das coerções internas tão normais a uma banda, das quais não devem escapar a SSC (samambaia sound club), uma das principais bandas do universo/cenário pop de florianópolis, na qual jean figura como homem de frente e letrista. independente, arrojado, artesanal. fruto de um período de maturação que considero como necessário, só vem dar ao público mais uma faceta, talvez a mais íntima, desse agitador cultural que, intencionalmente ou não, mafra se tornou. só, compondo, adornando as idéias, olhos fechados no vai-e-vem ilha-continente. como se aprofundar na criação de um homem só? como entender ou tentar explicar um homem só que é tantos? desnecessário. todos somos tantos e mafra não é diferente. embora sejam esses tantos profícuos e competentes em sua produção de tantos. só não se trata de ter ou não companhia, seria simplório demais. só não se trata, tampouco, de um solitário e sua criação de porão. a d-obra de mafra é sua, e só e é tão coletiva quanto a montagem de um quebra-cabeças numa praça. só perpassa cerca de dez anos de criação, seleção, suor, artesanato da palavra e versões a cappella, em busca da execução perfeita. mafra é um perfeccionista, qualidade rara nos que realmente sabem manufacturar objetos artísticos. só pode ser fruto da solidão criativa, aquela que se ativa mesmo em plena multidão. daí as possibilidades de contradição, paradoxos. só não é o umbigo do mundo, muito menos o de mafra -- por mais que ele possa acreditar nisso. só então pode ser um espelho, ecos e reflexos de uma caminhada. palcos, praças, praias, ruas, sebos, escritórios, sarjetas e altas rodas. mafra é um aglutinador. um ímã. sua força criativa reverbera e atinge as mais variadas direções e sentidos, cativando e envolvendo pessoas. sua verve polêmica polariza e dissemina. e não há como ser diferente. em minúsculas, jean mafra se infiltra e vaza. vaza sua voz, faz a sua vez. só vem acompanhado de toda essa carga, de toda essa gente, de todos esses tons, parcelas e parcerias, muitas para essas linhas; mafra vem acompanhado. acompanhando em ritmo anacrônico as voltas que o mundo deu, que o mundo dá. giranças de (sem)sentido. de saturação. situação de só: elo, naco de sentido, descarga, recarga, retorno, ritos e rotas, tapas e notas. queda brusca e busca.

pare de não fazer sentido

em 1984, a banda talking heads gravou em vídeo o show "stop making sense". david byrne e sua trupe, em quase duas horas de teipe, balançam, agitam e emocionam a platéia em performances corporais, cênicas e modificações de cenário. uma profusão de signos diversos, embaralhando e capturando a atenção do espectador, numa junção de música e imagens, corpo e som. uma meta-apresentação que mantém em "nossos dias" tremenda atualidade. jean, em outro momento, se apresenta como um produtor de meta-canções. tal como o cenário de "stop making sense", que se monta aos poucos, ao longo da apresentação, as canções de mafra deixam suas pistas, voltam-se para seu interior e executam-se enquanto escutam-se. um fazer-se-ouvir. "compondo" é a canção de abertura do álbum. o compositor lamenta (se lamenta talvez) o assassinato de uma barata, quem sabe o assassinato da canção, na busca de "construir um belo texto/inventar um novo som ou cantar fora do tom". na abertura, mafra dá a tônica de seu álbum, autoral, talvez num sentido radical, invadindo o abrigo secreto do compositor e expondo "a angústia da criação". “adorno” trata da questão da indústria, fazendo referência direta ao teórico t. w. adorno, que tanto tratou da questão da indústria cultural e de seus impactos na cultura. “adorno” é também apenas um complemento para algo que já está pronto, um arremate, muitas vezes essencial. jean mafra é ambicioso e não esconde suas ambições, coloca de cara a encruzilhada em que insere suas canções. há a manufatura artesanal e os versos em escala industrial, sem deixar de ressaltar a dor "no centro e no lado de dentro", inerente à prática de compositor/produtor de bens, o que se explicita pelo duplo sentido da palavra 'vendo' (verbos ver e vender). a criação também está presente na réplica ao seu parceiro fábio corrêa, na irreverente "fabioletas", em que mafra afirma seu apreço por rimas e, de modo irônico, marca os usos e abusos desse recurso ("se talvez me contradizo/ ou talvez provoque riso"). um bom uso é demonstrado em "arrependimento" com o uso de rimas internas dando sustentabilidade à canção, recurso muito bem utilizado por mafra em suas composições. "rosebud" conta com a participação de lígia estriga, cuja voz tremula num efeito que se condensa com a atmosfera etérea da canção, que é doce, mas nem por isso menos controversa, se pararmos para decifrar sua letra e seu tema. o mesmo tema de "dobra", em que uma "buceta" é cantada como "rara jóia", cujas dobras são obras-primas, pétalas que mantém encanto único. não que exista uma heterogeneidade rígida nas faixas de só, mas "mônica/motim" se destaca, provavelmente pela batida funk que sustenta o dueto entre jean e paula felitto, após referências a diversos ícones da canção/música popular brasileira. que explodam, que explorem o motim, barril de pólvora aberto, só deixa claras as suas intenções. se a palavra é medida e calculada nas composições de jean mafra, outro elemento que se destaca em seu processo de artesão é o uso da voz. suave, o timbre de mafra perpassa as canções de só, em acentuações que conferem sentido para além do sentido cantado, mostrando que a canção se estende para além da fórmula letra+música. o intéprete se faz presente e carimba seu selo, imprime sua marca no cantado, deformando e conformando o som, firme, irônica ou doce, como em "íris", "saudade" e "só". há uma busca de sentido em só? que sentido jean mafra pretende restabelecer, ao questionar a brilhante produção da banda talking heads? não creio se tratar de ruptura, nem de inversão. o diálogo, o intertexto, a paródia, são elementos que constituem as canções de só. uma grande conversa com o mercado, com as cartas marcadas. uma fala para as falhas e para os falsos -- profetas, reis e magos da canção. "manifesta" mostra isso de modo contundente. um caleidoscópio de referências se forma, travando diálogo com a tradição e com o novo, esvaziando o inesgotável, para que se encha de novo. "festa para animar".

para poucos

qual o sentido de tudo isso? qual o sentido de produzir? de criar? de procriar essa prole indesejada que é a canção que é marca de compromisso consigo mesma antes de tudo e que, normalmente, é taxada como sendo para poucos? que sentido restabelecer no caos administrado da circulação musical? que brechas adentrar e que barreiras estourar? talvez só haja um grande vazio que traga, que estraga e que nos traga de nada a nada. talvez haja som antes da luz e revolução sem revelação. não precisamos de messias, mas de mesclas. mas quem quer se importar? já disse que jean é ambicioso, pretensioso talvez... inicialmente, as apresentações de seu repertório solo foram chamadas de para poucos. claro, ali está chico. talvez esteja o chique do que é reservado aos iniciados. mais uma vez, a ironia vem resolver e mostrar os intentos desse rapaz. só ou pare de não fazer sentido ou (ainda) para poucos. não há sub nem superestimação nesse título. a proposição inicial é a de todo criador que tem que se deparar com sua cria e o vazio -- seu -- e do mundo ao seu redor. jean vem à público, cara desnuda, disposta a tapas, mostrar sua cria, suficientemente gestada, pronta (ou não) para ganhar (e arreganhar) o mundo. essa busca de nexo, de sentido, essa busca, esse apelo ao re-sentido só se dará contigo, querido leitor -- que até agora pode não ter percebido que falamos para e de ti. poucos e pouco a pouco, ainda. mafra vaza, escava e traça seus próprios cursos, seus roteiros, aglutina e contamina. não será sem dificuldades que seu álbum circulará. não será com pouco trabalho que sua voz reverberará. não será sem nexo o motim. manifesta agora tua ira, leitor. jean mafra morre no momento em que abraça teus ouvidos. deposita as moedas ao barqueiro, segue e consegue salvar-te. enfie confie-se. estaremos sempre sós, sem pedido de socorro que não grite apenas a nós. mas tu, como eu, como jean mafra e como o mundo, é (um) só.

juniores rodrigues
florianópolis, 10 de novembro de 2008

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